terça-feira, 9 de julho de 2013

Último artigo de Mário Nunes no Região do Castelo

Mário Nunes
Historiador
A cultura no espaço e no tempo (12)

Da Quinta de Vouzela resta o portal e o brasão

O concelho de Penela foi fértil em quintas senhoriais (restam algumas mas quase somente no nome), que pertenceram a famílias de linhagem nobre, denominadas de nobreza rural. Não podemos chamar-lhes famílias “latifundiárias” porque a maioria destas quintas não possuía a área suficiente que avaliza esse conceito. Eram terrenos agrícolas e florestas facilmente reconhecidas, logo propícias a um contacto real dos proprietários. Estes, eram senhores jurídicos e usufrutuários e não apenas recebedores das mordomias e foros nelas existentes. Não obtinham o significado inerente à época medieval do feudalismo.
Uma dessas quintas concelhias, Quinta de Vouzela, encontra-se no caminho dos Carvalhais e Torre de Chão de Pereiro, percorrendo a estrada que parte do cruzamento que conduz àqueles lugares e situado na via nacional que passa nas Serradas da Freixiosa e prossegue para Miranda do Corvo, passando na Vila do Espinhal. O passante depara-se com um portal de apreciável dimensão, austero, isolado no território envolvente, qual sentinela vigilante da extinta casa nobre, portal que enquadra o brasão nobiliárquico, testemunho restante da família que foi possuidora daquele património. Sem indicação (legenda ou algo semelhante) transforma-se em curiosidade para o passante que desconhece o seu passado, embora se apresente como um “ícone” familiar senhorial daquele espaço. Família terratenente, hoje alcunhada, pejorativamente, de “cacique local”, dominava, política, económica e socialmente, toda a área ao redor e sob a sua jurisdição. Era servida, na maior parte, por dezenas de trabalhadores agrícolas, criados e serviçais, que cuidavam das terras, da casa, das crianças e dos bens da agricultura, havendo outros servidores arrendatários das piores terras, que pagavam, pelo São Miguel, uma renda, o foro (galinhas, cereais, vinho, azeite, ovos, peles de animais, etc). Os senhores (dons) eram “venerados” e respeitados numa obediência servil, quase como “deuses”, pois incorporavam a cadeia hierárquica da nobreza real bem sintonizada na frase “palavra de rei não volta atrás, é sagrada”). Herdeiros das melhores propriedades de cultivo e das florestas onde abundavam a madeira, os animais e a as aves, levavam uma vida de opulência com festas, banquetes, caçadas, romances amorosos e outros divertimentos sociais.
O brasão esquartelado, de feição oitocentista, que encima o portal da Quinta de Vouzela, oferece a identificação dos seus possuidores, porquanto a pedra de armas, agora segura no portal (esteve em risco de cair e, nós, há anos, denunciámos a situação), apresenta a leitura dos elementos heráldicos das famílias que foram proprietárias da quinta e que resultaram de casamentos ou doações. Assim, vemos no brasão: I - Mendonças; II – Cunhas; III – Almeidas; IV – Mascarenhas. O timbre mostra uma coroa estilizada como coronel de nobreza, aparentada com a de Conde, usufruindo dessa grandeza por um dos membros familiares ser Par-do-Reino, um cargo das gradas personagens da nobreza. Logo, a quinta foi pertença de ilustres famílias nobres.
Na verga do portal lemos a data de 1831, uma data que corresponde ao período da reconstrução e restauro de que foi alvo a partir de 1820, quando a quinta pertencia ao Dr. José Maria de Mendonça. No entanto, a quinta tem existência mais antiga, pois transporta-nos para Luiz Colaço Mexia e esposa, Sabina de Almeida Mascarenhas, ele do Espinhal e ela da Quinta das Pontes, proprietários da mesma na primeira metade do século XVII. Sucessores de Lopo de Almeida por morte deste e com ramificações em diferentes gerações de terratenentes que residiam nas quintas ao redor do Espinhal, Cerejeiras, Bera (Almalaguês) e Penela, alguns foram batizados nas igrejas do Espinhal e Santa Eufémia, havendo uma dama, D. Úrsula, que foi sepultada no convento de Santo António, em Penela.
Alguns dos sucessivos herdeiros da Quinta de Vouzela e cujos símbolos heráldicos estão no brasão, foram bacharéis pela Universidade de Coimbra, em Cânones e Leis, o que testemunha a sua importância nas áreas sociais, académicas, económicas e culturais.
Com a extinção das Ordens Religiosas em 1834 e a liberalização gradual da sociedade, a nobreza foi perdendo poder e privilégios, usurpados os seus bens, retalhadas as suas propriedades rurais e empobrecendo com o tempo. Desta forma, a Quinta de Vouzela com a sua casa senhorial e terrenos e floresta foi desmembrada e alienada. Atualmente preserva para sua identificação apenas o portal e o brasão que recordam os tempos áureos da sua existência, tendo desaparecido a casa e os espaços ajardinados do exterior.
Temos em nosso poder mais documentação que pesquisámos e que regista a evolução nobiliárquica das famílias que ali habitaram ou foram proprietárias. Porém, transcrevê-la seria fastidiosa a sua leitura, pelo que optámos por esta síntese, que oferece uma imagem do valor daquele património setecentista que sucumbiu com o tempo e por mor dos homens.

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