Mário Nunes Historiador |
A cultura no espaço e no tempo (12)
Da Quinta de Vouzela resta o portal e o brasão
O concelho de Penela foi fértil em quintas senhoriais (restam algumas
mas quase somente no nome), que pertenceram a famílias de linhagem nobre,
denominadas de nobreza rural. Não podemos chamar-lhes famílias “latifundiárias”
porque a maioria destas quintas não possuía a área suficiente que avaliza esse
conceito. Eram terrenos agrícolas e florestas facilmente reconhecidas, logo
propícias a um contacto real dos proprietários. Estes, eram senhores jurídicos
e usufrutuários e não apenas recebedores das mordomias e foros nelas
existentes. Não obtinham o significado inerente à época medieval do feudalismo.
Uma dessas quintas concelhias, Quinta de Vouzela, encontra-se no
caminho dos Carvalhais e Torre de Chão de Pereiro, percorrendo a estrada que
parte do cruzamento que conduz àqueles lugares e situado na via nacional que
passa nas Serradas da Freixiosa e prossegue para Miranda do Corvo, passando na
Vila do Espinhal. O passante depara-se com um portal de apreciável dimensão,
austero, isolado no território envolvente, qual sentinela vigilante da extinta
casa nobre, portal que enquadra o brasão nobiliárquico, testemunho restante da
família que foi possuidora daquele património. Sem indicação (legenda ou algo
semelhante) transforma-se em curiosidade para o passante que desconhece o seu
passado, embora se apresente como um “ícone” familiar senhorial daquele espaço.
Família terratenente, hoje alcunhada, pejorativamente, de “cacique local”,
dominava, política, económica e socialmente, toda a área ao redor e sob a sua
jurisdição. Era servida, na maior parte, por dezenas de trabalhadores
agrícolas, criados e serviçais, que cuidavam das terras, da casa, das crianças
e dos bens da agricultura, havendo outros servidores arrendatários das piores
terras, que pagavam, pelo São Miguel, uma renda, o foro (galinhas, cereais,
vinho, azeite, ovos, peles de animais, etc). Os senhores (dons) eram
“venerados” e respeitados numa obediência servil, quase como “deuses”, pois
incorporavam a cadeia hierárquica da nobreza real bem sintonizada na frase
“palavra de rei não volta atrás, é sagrada”). Herdeiros das melhores
propriedades de cultivo e das florestas onde abundavam a madeira, os animais e
a as aves, levavam uma vida de opulência com festas, banquetes, caçadas,
romances amorosos e outros divertimentos sociais.
O brasão esquartelado, de feição oitocentista, que encima o portal da
Quinta de Vouzela, oferece a identificação dos seus possuidores, porquanto a
pedra de armas, agora segura no portal (esteve em risco de cair e, nós, há
anos, denunciámos a situação), apresenta a leitura dos elementos heráldicos das
famílias que foram proprietárias da quinta e que resultaram de casamentos ou
doações. Assim, vemos no brasão: I - Mendonças; II – Cunhas; III – Almeidas; IV
– Mascarenhas. O timbre mostra uma coroa estilizada como coronel de nobreza,
aparentada com a de Conde, usufruindo dessa grandeza por um dos membros
familiares ser Par-do-Reino, um cargo das gradas personagens da nobreza. Logo,
a quinta foi pertença de ilustres famílias nobres.
Na verga do portal lemos a data de 1831, uma data que corresponde ao
período da reconstrução e restauro de que foi alvo a partir de 1820, quando a
quinta pertencia ao Dr. José Maria de Mendonça. No entanto, a quinta tem
existência mais antiga, pois transporta-nos para Luiz Colaço Mexia e esposa,
Sabina de Almeida Mascarenhas, ele do Espinhal e ela da Quinta das Pontes,
proprietários da mesma na primeira metade do século XVII. Sucessores de Lopo de
Almeida por morte deste e com ramificações em diferentes gerações de terratenentes
que residiam nas quintas ao redor do Espinhal, Cerejeiras, Bera (Almalaguês) e
Penela, alguns foram batizados nas igrejas do Espinhal e Santa Eufémia, havendo
uma dama, D. Úrsula, que foi sepultada no convento de Santo António, em Penela.
Alguns dos sucessivos herdeiros da Quinta de Vouzela e cujos símbolos
heráldicos estão no brasão, foram bacharéis pela Universidade de Coimbra, em
Cânones e Leis, o que testemunha a sua importância nas áreas sociais,
académicas, económicas e culturais.
Com a extinção das Ordens Religiosas em 1834 e a liberalização gradual
da sociedade, a nobreza foi perdendo poder e privilégios, usurpados os seus
bens, retalhadas as suas propriedades rurais e empobrecendo com o tempo. Desta
forma, a Quinta de Vouzela com a sua casa senhorial e terrenos e floresta foi
desmembrada e alienada. Atualmente preserva para sua identificação apenas o
portal e o brasão que recordam os tempos áureos da sua existência, tendo
desaparecido a casa e os espaços ajardinados do exterior.
Temos em nosso poder mais documentação que pesquisámos e que regista a
evolução nobiliárquica das famílias que ali habitaram ou foram proprietárias.
Porém, transcrevê-la seria fastidiosa a sua leitura, pelo que optámos por esta
síntese, que oferece uma imagem do valor daquele património setecentista que
sucumbiu com o tempo e por mor dos homens.
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